segunda-feira, 29 de outubro de 2012

BIOGRAFIA DA FREIRA MARGARIDA COSSART


Em 1971, chegando na Casa de Detenção do Recife, conheci Peggy nos seus 32 anos de idade. Presença atraente e enérgica, gesticulando e falando rápido, ela se destacava nas nossas visitas. Através dela, os presos políticos de Pernambuco, muitos de formação marxistae ateus, passaram a dialogar e a aprofundar amizade com cristãos progressistas ou de inspiração socialista, num frutuoso exercício recíproco de quebra de preconceitos e unidade nas coisas essenciais da vida. Originária de uma família abastada do Rio, Peggy, que não usava hábito, era a irmã Margarida Serpa, superiora da Ordem do Sacre Coeur, professora da Universidade Católica e integrante do setor progressista da igreja Católica no Recife, ligada a D. Hélder Câmara. Começava a visitar os presídios e a se integrar na solidariedade aos presos e às presas políticas, que na época cumpriam penas, respectivamente, na Casa de Detenção do Recife e no presídio feminino do Bom Pastor. As visitas aos presídios, o engajamento na luta pela anistia e no apoio às duas greves de fome dos presos políticos de Pernambuco, em 1975, renderam a Peggy o constrangimento de ser arrastada à presença dos órgãos de segurança.

Pelas mãos de Peggy conhecemos o padre francês radicado no Recife, Henri Cossart, ou simplesmente Henrique. Tempos depois ela nos comunicou que estavam namorando. Parodiando Cristo, eles apelaram: “Pai, afasta de nós esta batina e este hábito!” E partiram para beber o cálice. Casaram-se e tiveram dois filhos, Arnaldo e Francisco. Quando Henrique foi aposentado como operário metalúrgico, iniciaram uma vida rural no Sítio dos Macacos, em Gravatá, passando aí a cuidar de filhos e flores.

Firmando amizade, já na Penitenciária Professor Barreto Campelo, para onde fomos todos transferidos em outubro de 1973, um dia prometi a Peggy partilhar com ela a primeira cerveja, quando fosse solto. E em abril de 1979, na manhã da liberdade, cheguei à sua casa para cumprir o trato. Reencontramo-nos na formação do PT, nos comícios de Lula e nos víamos em eventos do movimento popular. Até que, no dia 14 de maio de 2001, em pleno exercício da solidariedade, quando se encontrava numa repartição pública em Gravatá, com dois trabalhadores rurais que cuidavam da aposentadoria, Peggy teve um ataque cardíaco e morreu num táxi em direção ao hospital.

Peggy participou do Jornal dos Bairros, mergulhou nos movimentos populares e na luta pela anistia, participou da formação do PT em Pernambuco, destacou-se no trabalho com a oposição metalúrgica, atuou junto ao Sindicato das Domésticas e apoiou os agricultores do Sítio dos Macacos, tendo o cuidado de não aparecer como figura de proa, para evitar o velho cupulismo político e não impedir o surgimento de lideranças locais.

Peggy viveu com fome e sede de justiça. Levantou bem alto a lâmpada da verdade. Enfrentou os vendilhões do templo. Optou pelos pobres. Visitou os presos. Ajudou os famintos a se alimentarem de resistência. Queimou-se nos fogos do amor. Pariu, amamentou. Foi parceira do marido e dos filhos. Lutou, bebeu e festejou com os companheiros e amigos.

Peggy foi fermento na massa e salgou a terra com gestos largos. Agora que o seu corpo volta à terra, desejamos que ele dê boas flores e bons frutos. E desenrolamos as lembranças para reter a presença e atravessar a saudade.

ANUNCIAÇÃO DE PEGGY

Marcelo Mário de Melo

Me é impossível
fazer um poema
nos ritmos de Peggy.

As palavras c o r r e m
sobem
sobre
as
outras
ligeiragitosas.

Incandesce a pena
peggyando fogo
nos clarões de Peggy.

E assim impossível
peggy-poemá-la
resta-me somente
peggy-anunciá-la:

Lá vem Peggy!
Lá vem Peggy!
Parece brincadeira
mas é freira.

Lá vem Peggy!
Lá vem Peggy!
pelo diabo ou por Deus
tentando os ateus.

Lá vem Peggy!
Lá vem Peggy!
Lá vem Peggy vindo
violentando a estrutura da matéria!

(Casa de Detenção do Recife, 1971)